domingo, 2 de setembro de 2012

. Considerações acerca da origem da guerra entre os sexos


Texto de Flávio Gikovate:
O tema é excitante e fundamental e sobre ele venho publicando desde 1979. Confesso que foi só com o passar dos anos que me dei conta da importância de algumas das considerações que fiz na época. E a título de autocrítica, devo dizer que fui um tanto ingênuo por não ter percebido a relevância das minhas observações. O que diminui um pouco a sensação desagradável que essa constatação me provoca é o fato de que não fui o único a ter dificuldade em lidar com a questão das diferenças entre os sexos e principalmente extrair delas todas as suas conseqüências. O próprio Freud apontou o aspecto mais importante relativo às diferenças entre o masculino e o feminino – qual seja, o da existência de um desejo visual masculino que inexiste na mulher – em uma nota de rodapé de sua obra O mal estar na civilização, escrita em 1930. Jamais voltou ao assunto! Uma importante diferença entre os sexos consiste na ausência de período refratário após o orgasmo nas mulheres, diferentemente do que acontece com os homens, e quem primeiro a registrou foi Masters e Johnson; esses autores também não conseguiram extrair todos os desdobramentos que tão importante diferença impõe. É indiscutível a dificuldade que temos de estudar a nós mesmos!
Tentarei penetrar no círculo vicioso que determina a hostilidade recíproca entre homens e mulheres pelo ponto que considero o inicial: aquele que define as primeiras sensações dos homens diante da diferença entre os sexos que surgem junto com a sexualidade adulta. Registrei, há quase 20 anos, que a chegada dos primeiros impulsos eróticos mais intensos que, nos rapazes, acontece ao redor dos 13 anos – junto com o surgimento dos caracteres sexuais típicos da virilidade –, vem acompanhada de algumas sensações íntimas negativas e totalmente inesperadas. Os meninos crescem com a idéia de que são os privilegiados, uma vez que lhes ensinaram que o mundo é dos homens. O contrário acontece com as meninas, de sorte que muitas delas crescem revoltadas e invejosas da condição privilegiada que os meninos costumam ter em sociedades como a nossa. Com a chegada da puberdade, os rapazes passam a sentir enorme desejo sexual por um sem-número de moças, desejo este que pede a aproximação e o roçar no corpo delas. A grande e inesperada surpresa é que tal desejo não é correspondido. Por essa eles não esperavam! A partir daí, desenvolvem uma sensação de inferioridade, frustrando-se pela ausência de reciprocidade. Desejar sem ser desejado da mesma forma gera uma enorme frustração em praticamente todos os moços. Tal sentimento muito comumente acompanha os homens ao longo de toda a vida.

Em geral, os rapazes atribuem, até hoje, o fato de não serem objeto de desejo visual à sua "precária" aparência física. Portanto, o que é baixo, gordo, narigudo, entre tantos defeitos que os adolescentes vêem em si mesmos, sente-se não-atraente devido a essas desvantagens relacionadas com sua imagem. Entendem a questão como um fato particular, condição na qual ficam muito deprimidos e ressentidos. Para eles, outros rapazes provocam o desejo que na verdade eles mesmos gostariam de causar, podendo desenvolver grande hostilidade invejosa em relação aos mais bonitos e charmosos. Seguramente, a beleza masculina é um elemento capaz de despertar o interesse das mulheres, mas é fato também que existe uma grande diferença entre despertar o interesse e o desejo. Não sabemos como reagirão os moços quando puderem crescer e chegar à adolescência já de posse dos dados relativos à nossa sexualidade que só agora estão começando a nos ficar mais claros.
A diferença, certamente, é de natureza biológica e independe da aparência física dos rapazes. Corresponde, como já apontado por Freud, à transferência para a zona da visão daquilo que, nas outras espécies de mamíferos, é próprio da olfação. O desejo é propriedade masculina, define um papel ativo para o macho no tocante à abordagem sexual. Nos mamíferos, em geral, tal característica não define qualquer diferença hierárquica: é apenas uma diferença. Na nossa espécie, existe a diferença e o que as mentes dos homens e, é claro, das mulheres pensam sobre ela. Não há, para nós, fatos desacompanhados das reflexões e ponderações que fazemos a respeito deles. Em geral, os homens sentem-se prejudicados pela constatação; registram a diferença na natureza do desejo como grande desvantagem, o que determina o surgimento de uma enorme hostilidade de natureza invejosa. Em 1979, apontei e enfatizei que a primeira manifestação invejosa adulta era do homem em relação à mulher e não o contrário, que é voz corrente em psicologia.
A constatação de que o desejo visual é unilateral desperta no homem a consciência de que há uma vantagem feminina nesse ponto de vista, uma vez que ela terá que concordar com a aproximação física dele – ao menos no mundo civilizado, onde não é aceita a violência física para impor a intimidade sexual; entende-se também por esta via a origem do estupro: uma revolta, levada às últimas conseqüências, contra a diferença sexual. A concordância da mulher dar-se-á em decorrência de outros fatores que não o desejo visual, pois ele não existe da mesma forma como nos homens. O fato de um homem já desejar uma mulher e ter que esperar pelo veredicto dela para saber se poderá ou não se aproximar dela lhe determina, como disse, um forte sentimento de inferioridade acompanhado de uma profunda inveja, ou seja, de enorme hostilidade sutil e que tentará se exercer de forma um tanto dissimulada.
O que fizeram os homens? Beneficiaram-se de sua superioridade muscular e, quando tal propriedade era básica para o exercício das atividades fora de casa – o que se costuma chamar de "espaço público" –, trataram de se apropriar dos poderes que derivam de serem os detentores dos frutos do trabalho, o que, mais ou menos rapidamente, passou a corresponder a alguma forma de dinheiro. Como não poderia deixar de ser, levando-se em conta a inveja masculina e a necessidade de melhorar sua posição perante as mulheres, fecharam as portas do mundo do trabalho, de modo que a elas ficava reservado apenas o "espaço privado". Estavam fadadas a reproduzir e a cuidar da casa, dos filhos e do seus esposos, de quem se tornavam totalmente dependentes para os fins de sobrevivência material.